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13/05/2015 - Após feijão, Embrapa prepara alface transgênica
Segunda variedade geneticamente modificada produzida pela empresa pública tem promessa de resolver déficit nutricional e deve chegar ao mercado em 2021. Para pessoas que atuam na área, solução é simplista e arriscada
São Paulo – Três anos após a aprovação do feijão geneticamente modificado, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) prepara agora uma variedade transgênica de alface. A verdura está prevista para chegar ao mercado em 2021 e promete suprir a carência nutricional de ácido fólico na alimentação brasileira. Presente em todas as folhas, a vitamina é responsável por evitar doenças relacionadas a má formação do tubo neural durante a gestação. Os problemas mais comuns são anencefalia, caracterizada pela ausência parcial do encéfalo, espinha bífida, que resulta da formação incompleta da medula espinhal, e lábio leporino, em que o bebê nasce com uma abertura no lábio. O primeiro teste de campo com a variedade transgênica foi autorizado no fim de 2013 pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio) – órgão ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) que decide sobre a produção e comercialização de transgênicos no Brasil – e foi realizado em janeiro deste ano.
Na experiência inicial, os pesquisadores conseguiram aumentar em 15 vezes o valor da substância presente na planta. Ainda que uma porção média de alface tradicional possua ácido fólico em pequena quantidade – cerca de 5% dos 731,25 mg por cada 100g de tecido que o corpo precisa diariamente – a hortaliça foi eleita pela Embrapa por ser a folha mais consumida no mundo. Além disso, a alface é comida crua, o que evita perda de parte do ácido fólico que se degrada com o processamento da folha. Os próximos experimentos ainda precisam ser autorizados pela CTNBio, mas a previsão da Embrapa é que os ensaios de campo sejam retomados em agosto.
A produção de transgênicos para suprir deficiências alimentares é uma nova aplicação da engenharia genética em alimentos. A tecnologia geralmente é utilizada para promover melhorias agronômicas voltadas ao produtor, como no caso do feijão, em que o grão foi modificado para ser resistente ao vírus do mosaico dourado que ataca as lavouras na safra seca. No entanto, alterações genéticas em alimentos causam bastante desconfiança com relação aos possíveis efeitos no organismo humano. Organizações da sociedade civil criticam, por exemplo, a certificação de um transgênico sem que seus efeitos em humanos em longo prazo tenham sido criteriosamente estudados.
Para ser aprovada pela CTNBio e chegar ao cidadão, a alface ainda precisa passar por procedimentos que comprovem que é segura para o consumo: após os testes de campo, ela será consumida por animais e passará por ensaios de biossegurança que atestarão se o alimento é ou não apropriado para a ingestão humana. Com a certificação do órgão, a variedade será plantada e analisada pelo Ministério da Agricultura. Caso atenda às especificidades, a alface será registrada no Registro Nacional de Cultivares e poderá, então, ser vendida e consumida.
Os testes feitos até agora produziram transgênicos da variedade de alface crespa Verônica. Entretanto, o pesquisador responsável pelo projeto na Embrapa, Francisco Aragão, explica que a modificação genética pode ser feita em qualquer tipo de alface. “Precisamos desenvolver variedades específicas para cada região do país, porque existem preferências regionais.”
A biofortificação de alimentos não é realizada somente por meio de engenharia genética. Desde 2004, o governo brasileiro regulamentou a suplementação de farinhas de trigo com ácido fólico, mas Aragão afirma que a medida não consegue mais atingir o público-alvo. “Com a fortificação das farinhas no mundo, 40% das deficiências causadas por falta de ácido fólico já foram superadas. O problema é que hoje as mulheres jovens em período reprodutivo, que são nosso alvo primário, estão evitando comer massas. O ácido fólico foi colocado na farinha porque ela faz parte de uma quantidade enorme de alimentos que são largamente consumidos pela população.”
Ainda que a alface transgênica seja um meio de solucionar a deficiência de ácido fólico, existem outras hortaliças que fazem parte do cardápio brasileiro e que possuem a substância em quantidade suficiente para suprir a necessidade diária, como o espinafre e os brócolis. Uma das principais críticas à manipulação genética de alimentos com fins nutricionais é que podemos encontrar vitaminas, minerais, aminoácidos e outras substâncias de maneira natural, sem que seja necessária a criação de um transgênico para este fim.
De acordo com o diretor-técnico da Associação de Agricultura Familiar e Agroecologia (AS PTA), Gabriel Fernandes, a solução adotada pela Embrapa trata a carência alimentar de modo “simplista”. Ele reforça que a alimentação do brasileiro, principalmente nas grandes cidades, é pobre e pouco diversa. “Hoje nós comemos só arroz, feijão, batata, carne, alface e tomate. Mas não vai ser criando transgênicos que vamos resolver o problema e fazer com que a comida seja saudável. Pelo contrário, precisamos diversificar a produção de alimentos e enriquecer os solos para um plantio de qualidade e de outras variedades”, afirma.
A AS PTA defende que a produção de alimentos seja diversificada por meio de programas de auxílio do governo federal. Hoje, o Brasil mantém duas importantes iniciativas voltadas à questão alimentar. Por meio do Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), o Estado repassa verbas aos governos estaduais e municipais para a compra de alimentos que irão compor a merenda escolar. Do total de recursos, 30% são destinados à agricultura familiar e orgânica. Além disso, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), criado em 2003 no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), também promove a compra de alimentos provenientes da agricultura familiar e os distribui para a população em situação de vulnerabilidade social. Em ambas as iniciativas, alimentos ricos em ácido fólico podem ser incluídos na dieta.
Para o ex-representante do Ministério do Meio Ambiente na CTNBio, José Maria Ferraz, a alimentação brasileira deve ter como base alimentos regionais. “Nós retiramos os alimentos típicos da população e fazemos com que ela coma o alimento padronizado. Aí vem a necessidade de inventar transgênicos para suprir nutrientes. Essa é uma lógica maluca. O que precisamos é exatamente o contrário: valorizar alimentos locais”.
Ferraz lembra que existem diversos alimentos, como o espinafre e os brócolis, que já estão na natureza e possuem os nutrientes necessários. Ele também explica que algumas hortaliças, consideradas “plantas invasoras”, crescem no meio de outras lavouras, são ricas em ácido fólico, estão adaptadas à região e não precisam de cuidados específicos durante o plantio.
“Se formos seguir essa lógica maluca, cada substância que está faltando na alimentação, a gente cria um transgênico. Há hoje um monte de hortaliças muito mais nutritivas que os transgênicos e que precisam ser incluídas na dieta. Não é fazer cientistas produzirem algo que não está na natureza. Na verdade, o transgênico tira a semente do domínio da população e agrega um suposto valor para cobrar mais pelo item geneticamente modificado”, argumenta.
Fora a discussão sobre a necessidade de se produzir alimentos transgênicos, a ingestão de um organismo geneticamente modificado (OGM) e seus efeitos no corpo humano também são entraves. O pesquisador da Embrapa Francisco Aragão alega, porém, que a alface será segura, porque a planta tradicional já possui ácido fólico. Assim como nas outras hortaliças, o ácido fólico fica armazenado na alface em moléculas chamadas folatos. Os experimentos demonstraram que, na planta transgênica, os mesmos folatos são produzidos, só que em maior quantidade.
Para saber os efeitos da alface geneticamente modificada no organismo animal o pesquisador conta que serão feitos ensaios em animais para comparar o sangue dos que ingerirem a alface biofortificada e dos que comerem a planta normal. Ainda que os resultados possam identificar que não houve alteração nas funções corporais, o período de duração dos estudos é reduzido e pode não ser suficiente para evidenciar efeitos a longo prazo.
“Nas pesquisas que estão sendo feitas hoje a população é cobaia. O grande problema dos transgênicos é que os pesquisadores fazem uma análise simplista e se detectam que o gene está se expressando, tudo bem”. A dúvida levantada por Ferraz é a mesma que paira sobre o feijão transgênico, aprovado para o consumo pela CTNBio no fim de 2011.
A medida, entretanto, foi contestada por entidades defensoras dos direitos do consumidor e por membros da própria comissão que alegaram que os testes de toxicidade feitos com o grão foram insuficientes. Após passar por cerca de 15 de ensaios de campo para checar se a qualidade do material geneticamente modificado é similar à do feijão tradicional, a variedade será registrada pelo Ministério da Agricultura e deve chegar aos supermercados no início de 2016.
A modificação genética teve a finalidade de tornar o grão resistente ao vírus do mosaico dourado, transmitido para o feijão pela mosca-branca principalmente durante a safra de janeiro a março. A doença torna as folhas amareladas e deformadas e pode acarretar na perda total da lavoura. Goiás, Distrito Federal, parte do Triângulo Mineiro, sul de São Paulo, norte do Paraná, oeste da Bahia e Mato Grosso do Sul são atualmente as áreas mais afetadas em território brasileiro pelo vírus.
Para tornar o grão resistente, a empresa inseriu um fragmento do DNA do vírus no genoma nuclear do feijão. De acordo com Francisco Aragão, também responsável pelos estudos do grão na Embrapa, os experimentos em animais foram suficientes para atestar que o feijão pode ser consumido pela população sem dano ao organismo. O teste foi repetido três vezes com um total de 102 animais usados, sendo, em cada experimento, 22 machos e 12 fêmeas. Dos ratos, 30 ingeriram feijão geneticamente modificado.
Apesar dos testes completos, o experimento que indica a toxicidade do grão transgênico foi medido apenas com três ratos, todos machos, durante 35 dias. Segundo Ferraz, integrante da CTNBio à época e pesquisador aposentado da Embrapa, os animais apresentaram aumento de fígado – o que indica que a substância pode ser tóxica – e das microvilosidades do intestino, diminuição dos rins e alteração de componentes nutricionais provenientes do feijão. Além disso, a falta de fêmeas no experimento impede estudos sobre os efeitos do grão transgênico na gravidez.
“Não dá para fazer análise estatística com três ratos comendo feijão geneticamente modificado durante 35 dias. Ninguém quer ver a segurança da população realmente, porque todos comem feijão no Brasil, principalmente a população de baixa renda. Só que nós comemos 270 gramas de feijão a vida toda, não por 35 dias, como os ratos. Com isso podemos ver a que risco eles estão submetendo a população”, contesta Ferraz.
O feijão transgênico comercializado será da variedade carioca, que é a mais consumida no Brasil. A pesquisadora da Embrapa Maria José Peloso explica que a modificação pode ser feita em qualquer variedade de feijão. Há hoje, no país, cerca de 55 variedades crioulas de feijão só no Agreste da Paraíba. Mexicano, mulatinho, mulatão, carioca, preto-uberabinha, bico-de-ouro, gordo, sempre-verde, garanjão, pau-ferro, corujão, estendedor, moita-vagem-roxa, cara-larga, orelha-de-vó, boca-de-moça, olho-de-peixe, rosinha, são algumas das sementes plantadas nos sistemas de agricultura local e que acompanham as famílias ao longo de dezenas, às vezes mais de uma centena de anos. A existência do grão transgênico, no entanto, pode ruir o alcance destas variedades no mercado.
Segundo Maria José, a variedade transgênica do feijão carioca irá, sim, se impor sobre as outras, especialmente na safra seca, período de maior ataque do vírus do mosaico dourado. Comprar um grão resistente ao vírus nesta época é a garantia de que a safra sairá ilesa. “Isso ocorrerá no plantio de janeiro a fevereiro porque você tem uma alta população da mosca-branca, que é o inseto vetor no vírus. Aí terá bem mais transgênico no mercado para o produtor”, explica. A Embrapa ainda está estudando a forma de comercialização do material geneticamente modificado. A empresa pode vender os grãos aos produtores e cobrar royalties por cada safra transgênica plantada ou taxar somente a primeira leva de feijão.
Na safra seca de 2014, os principais estados produtores de feijão foram Paraná, com 31,9%, Mato Grosso, com 18,4%, Minas Gerais, com 17,6% e Ceará, com 5,1%, considerando a produção da safra 2012/13. Os dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) mostram que dois dos maiores produtores – Paraná e Minas Gerais – são atacados pelo vírus e terão, provavelmente, uma maior produção de feijão transgênico no período. No mapa da instituição ainda é possível ver que o grão da segunda safra também é produzido significativamente em Goiás, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e São Paulo, áreas também afetadas pelo mosaico dourado.
Desde o início dos estudos sobre feijão transgênico já se passaram 18 anos. Entretanto, o grão ainda não foi consumido por humanos. Maria José considera que ele será seguro para o organismo porque foi liberado pela CTNBio. “Ela é soberana, disse que não havia necessidade de se fazer outros testes, definiu que estava adequado e liberou. Não há nenhuma diferença do material transgênico para o convencional”, diz.
A pesquisadora assume que o transgênico foi um “evento construído” – porque o DNA do vírus nunca fez parte da composição do feijão – e afirma que não haverá monitoramento pela Embrapa quando o grão já estiver no prato dos brasileiros. Caso haja algum problema, o cidadão deve ficar alerta quando o produto for vendido e reportar à empresa. Ao ser questionada pela RBA se haveria outra medida a ser tomada com relação aos efeitos do feijão transgênico no organismo humano, Maria José foi categórica: “Em nível de consumidor e consumo, não”.
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